quarta-feira, 30 de julho de 2014

A SEMANA DE ARTE MODERNA DE 1922 : O MARCO DO MODERNISMO

            A ideia de realizar uma semana de arte partiu do pintor Di Cavalcanti. Inicialmente, o objetivo era modesto: uma pequena exposição de arte moderna na livraria e editora O Livro, em São  Paulo. Nessa livraria, os modernistas costumavam reunir-se para palestras, declamações e mostras de trabalho.
Por intermédio do escritor Graça Aranha, Di Cavalcanti conhece Paulo Prado, um homem culto, rico, de formação européia e bom gosto artístico. Este se anima com a ideia e resolve ajudar. A adesão de pessoas de destaque da alta sociedade paulistana que resolveram prestigiar o evento aumenta ainda mais o interesse da imprensa em divulgá-lo.
            Escolhe-se, então, um novo local para a realização da semana: o majestoso Teatro Municipal de São Paulo, que tinha sido inaugurado em 1912 e era o reduto artístico da aristocracia da cidade.
            Depois de grande publicidade na imprensa, começaram a realizar-se os espetáculos, programados para os dias 13, 15 e 17 de fevereiro de 1922. No saguão  do teatro, é instalada ma exposição de artes plásticas que inclui trabalhos dos artistas Vítor Brecheret, Anita Malfati, Di Cavalcanti, Vicente Rego Monteiro, entre outros.

Capa do Catálogo da Semana, por Di Cavalcanti

As noites polêmicas


            No dia 13, Graça Aranha abre a Semana com a palestra “Emoção estética na obra de arte”, propondo a renovação das artes  e das letras. Vários textos modernistas são declamados em seguida. Depois, apresenta-se uma composição musical de Villa-Lobos e uma conferência de Ronald de Carvalho sobre a pintura e a escultura modernas no Brasil. O programa s encerra com a execução de algumas peças musicais.
            No dia 15, a programação provocou muita polêmica e agitação. Abre a noite o escritor Menotti del Picchia, com a palestra “Arte moderna”. Suas enfáticas reivindicações de liberdade e renovação provocaram apartes e vaias. Alguns jovens escritores também são apresentados e declamam versos modernos, a que se segue ruidosa manifestação de desagrado dos espectadores, com gritos, vaias e ofensas. O pianista Guiomar Novaes fecha a primeira parte da programação e sua música acalma um pouco o ambiente. No intervalo, perante um público espantado com as obras expostas no saguão, Mário de Andrade faz uma rápida palestra sobre arte moderna, na escadaria do teatro. Mas quase não é ouvido, pois as pessoas começaram a vaiá-lo e a caçoar das obras, o que gerou um grande tumulto. A segunda parte do programa, mais tranqüila, constou de execução de peças musicais.
            “No dia 15, o poema ‘Os sapos’, de Manuel Bandeira, que ridicularizava o Parnasianismo, foi declamado por Ronald de Carvalho sob os apupos, os assobios, a gritaria de ‘foi não foi’ da maioria do público. Agenor Barbosa obteve aplausos com o poema ‘Os pássaros de aço’, sobre o avião, mas Sérgio Milliet falou sob o acompanhamento de relinchos e miados.” (Mário da Silva Brito)
            A Semana foi encerrada no dia 17 com o espetáculo de Villa-Lobos, que causou um certo alvoroço porque a platéia achou que fosse provocação “futurista” o compositor e maestro apresentar-se de casaca e chinelos... Mas o motivo dessa estranha combinação era muito simples: Villa-Lobos estava sofrendo com um calo e não tinha condições de usar sapatos...
Cartaz de Divulgação da Semana


Saldo positivo

            Pode-se dizer que, apesar das críticas e obstáculos, a Semana de Arte Moderna de 1922 conseguiu atingir seu objetivo: divulgar que existia uma nova geração de artistas, escritores e intelectuais lutando pela renovação da arte brasileira e pela atualização da nossa cultura.
            Mas a Semana de 22 representa apenas um dos momentos da história do Modernismo, que, na verdade, já se iniciara antes e prosseguiria depois em várias direções, consolidando-se como o movimento cultural mais fecundo de nossa história. É um movimento tão rico que não poderia te, como realmente não teve, um “programa” rígido de idéias, uma “cartilha” a ser fielmente seguida pelos participantes.

Desejo de atualização

            As figuras que se destacam no anos polêmicos que antecederam a realização da Semana de 22, como Oswald de Andrade, Menotti Del Picchia e Mário de Andrade, divergiam profundamente quanto às características da renovação pretendida, conforme provam suas obras e a evolução posterior de cada um. O mesmo ocorreu em outras artes, como pintura, escultura e música. O que animou os jovens a unir-se em certo momento foi a consciência da necessidade de lutar contra obstáculos comuns: o espírito conservador e passadista, o obscurantismo e o provincianismo cultural na época.
            O desejo de atualizar a nossa arte, de coloca-la em dia com o que se estava fazendo na Europa, sobretudo na França, foi o que congregou os jovens modernistas e deu ao movimento matizes internacionais, recebendo, por parte dos mais conservadores, a pecha de "moda" importada.  Pela primeira vez em nossa história cultural, houve uma sintonia imediata com os centros de vanguarda e isso incomodou dos "donos" da arte brasileira.


Influência estrangeira

            A influência estrangeira no movimento é visível e não há por que nega-la, mas se distingue das outras influências que ocorreram no Brasil, principalmente por ter provocado um processo de atualização que despertou o interesse pela pesquisa de uma "linguagem artística brasileira" adequada aos tempos modernos, tanto na literatura como nas outras artes. Esse esforço de renovação foi simultâneo à busca de nossas raízes culturais, gerando, anos depois, uma preocupação nacionalista que se firmou como um dos objetivos da nova geração, chegando mesmo a ultrapassar os limites da arte para desdobrar-se na ação política.

"Paulicéia desvairada"

             O desejo eclodiu inicialmente em São Paulo, porque ali a industrialização avançava a passos largos. Tanto econômica quanto tecnicamente, São Paulo estava mais sintonizada com o resto do mundo do que as outras cidades do país - mais receptiva, portanto, ao entusiasmo pela inovação, ao gosto pelo progresso, ao êxtase pela vida vibrante dos grandes aglomerados urbanos, características que marcaram o Modernismo em várias partes do mundo e que encontraram na "Paulicéia desvairada" seu reduto mais propício. O próprio Oswald de Andrade assim resumiu essa questão do início do movimento: "Se procurarmos a explicação do porquê o fenômeno modernista se processou em São Paulo e não em qualquer outra cidade do Brasil, veremos que ele foi uma conseqüência da nossa mentalidade industrial. São Paulo era de há muito batido por todos os ventos da cultura. Não só a economia promovia os   recursos, mas a indústria, com a sua ansiedade do novo, a sua estimulação do progresso, fazia com que a competição invadisse todos os campos de atividade."

Uma atitude de contestação

            A Semana de Arte Moderna de 1922 foi, portanto, uma tomada de posição coletiva da nova geração contra o culto do passado, os preconceitos artísticos e a submissão a normas impostas pela tradição acadêmica.
            Mais que uma proposta teórica, esse movimento foi uma atitude de contestação, uma declaração franca e ruidosa dos direitos dos artistas brasileiros, uma forma de protestar contra a retórica parnasiana esterilizante (que, de resto, já estava desacreditada), contra a obsessão pelo purismo lingüístico que tinha como padrão as normas de Portugal.  Foi  uma reação agressiva contra o marasmo sufocante das convenções que imperavam nas diversas artes - pintura, escultura, música, literatura - e que acabou provocando uma união inédita entre os artistas, encorajando cada um deles a ousar mais, a pensar de modo independente e criativo, a libertar-se, enfim, da camisa-de-força que os preconceitos de um tradicionalismo pomposo e estéril impunham á vida cultural brasileira.
            Um dos aspectos modernistas do texto é a distribuição espacial dos versos, que não estão disposto conforme os esquemas tradicionais. Não há preocupação com as rimas (que são ocasionais), mas sim com o ritmo, bem evidente na seqüência "E o samba estronda / rebenta / retumba / ribomba". Nesses versos, a sugestão do ritmo do samba é reforçada pelo uso da aliteração (efeito sonoro provocado pela repetição de fonemas semelhantes numa palavra, num verso ou numa frase), presente também nos últimos versos.

Samba, de Di Cavalcanti


Samba

Poente - fogueira de São João.
E sob a cinza noturna o sol é um tição quase apagado quase.
                        Mas a noite negra
espia de longe por uma nesga
de nuvens e galhos. E vem depressa e chega
correndo. Chega. E ergue a lua redonda
e branca como um pandeiro.
                        E o samba estronda
rebenta
            retumba
                        ribomba.
E bamboleando em ronda
dançam brandos tontos e bambos
os pirilampos.
Guilherme de Almeida

            Na época, estava na moda ainda o poema parnasiano; mas a liberdade formal, a linguagem simples e o tema de inspiração popular afastam esse poema de Guilherme de Almeida da tradição parnasiana, que fazia questão dos rígidos esquemas de rimas e estrofes e da linguagem rebuscada, cheia de palavras raras.

Relicário

No baile da Corte
Foi o Conde d'Eu que disse
Pra Dona Benvinda
Que farinha de Suruí
Pinga de Parati
Fumo de Baependi
É come bebê pita e caí
Oswald de Andrade

            O poema-piada, como esse de Oswald, foi muito comum nos primeiros tempos do Modernismo. Era um modo de provocar os tradicionalistas, debochando da "seriedade" da poesia. Observe também a liberdade formal do texto - ausência de pontuação e versos de diferentes medidas.

Pneumotórax

Febre, hemoptise, dispinéia, e suores noturnos.
vida inteira que podia ter sido e que não foi.
Tosse, tosse, tosse.

– Diga trinta e três. Mandou chamar o médico:
– Trinta e três... trinta e três... trinta e três...
– Respire.
(...)
– O senhor tem uma escavação no pulmão
                [ esquerdo e o pulmão direito infiltrado.
– Então, doutor, não é possível tentar o
                                                  [ pneumotórax?
                   Não. A única coisa a fazer é tocar um
                                                [ tango argentino.
Manuel Bandeira

            Esse é um dos poemas mais famosos do Modernismo. Por trás de uma aparente brincadeira poética, revela-se o sofrimento pessoal de Manuel Bandeira – a tuberculose que o castigou praticamente durante a vida toda. Pneumotórax é o nome de um tratamento da tuberculose pulmonar por introdução de nitrogênio ou ar na cavidade pleural.
            Os três primeiros versos são admiráveis como síntese de um drama existencial. E o diálogo com o médico termina com um verso que tornou muito popular como forma de expressão do irremediável, ao mesmo tempo amarga, irônica, bem humorada: "A única coisa a fazer é tocar um tango argentino".
            Nesse poema, temos as conquistas principais do Modernismo: linguagem coloquial, liberdade de construção e densidade poética.

Movimentos e tendências do Modernismo após a Semana

            Terminada a Semana, os modernistas preocuparam-se com:
§ a divulgação de suas idéias por meio de revistas;
§ o aprofundamento de suas críticas, organizadas por meio de discussões e propostos de movimentos culturais.

Principais revistas:


  • Klaxon       São Paulo             1922,1923
  • Estética     Rio de Janeiro               1924
  • Terra roxa e outras terras   São Paulo    1926
  • A Revista    Belo Horizonte          1925
  • Verde        Cataguases (MG)      1928
  • Maracujá    Fortaleza                 1929
  • Festa         Rio de Janeiro          1927

A revista Klaxon representou a primeira tentativa de organizar as idéias expressas pela Semana de Arte Moderna. Procurou contrapor duas correntes: o Futurismo (ligado à experimentação e à velocidade na linguagem) e o Positivismo (corrente mais próxima ao Surrealismo e ao Expressionismo, na busca do inconsciente).
          A revista Estética, em seus três números de existência, trouxe farto material teórico, com a colaboração de Graça Aranha, Mário de Andrade, Manuel Bandeira e outros. A revista propôs a diferenciação entre "arte interessada"  e "arte autônoma" , pois, segundo Mário de Andrade, "a obra de arte é antes de mais nada uma organização fechada; em toda criação artística deve haver a intenção da obra de arte. Essa intenção é que torna uma entidade valendo por si mesma, desrelacionada."
          a revista Verde, a exemplo da Klaxon, Festa, A Revista e outras, juntou-se ao eco da revolução estética ensejada pelos modernistas, exorcizando a literatura tradicional e impondo-se como periódico de importância literária, conquistando a adesão de Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes, Menotti del Picchia, Pedro Nava, Aníbal Machado e outros.

A Anta e o Tamanduá: a luta ideológica

      Simultaneamente à publicação de obras e à fundação de revistas literárias, são lançados vários manifestos e movimentos, os quais, além de divulgar as propostas modernistas, permitem a troca de experiências entre seus participantes e até mesmo explicam ou justificam as obras dadas a público, fomentando o debate de idéias.

     Desses movimentos (ou grupos), destacam-se quatro, que representam na verdade duas tendências estético-ideológicas: de uma lado o movimento Pau-Brasil e Antropofagia, cujo símbolo era um tamanduá, liderados por Oswald de Andrade; e, de outro, o Verde-Amarelismo e a Escola da Anta, cuja símbolo era a anta, liderados por Plínio Salgado.

Movimento Pau-Brasil

            Liderado por Oswald de Andrade, cujo manifesto foi publicado em 1924 no jornal Carreio da Manhã, propunha a redescoberta do Brasil por intermédio de uma arte voltada para as características do país. Apregoava liberdade, o verso livre, os neologismos. Seu manifesto sugeria "ver com olhos livres".
            No manifesto e na poesia Pau-Brasil, Oswald propôs, por outro lado, o primitivismo psicológico, a valorização de estados brutos da alma coletiva; por outro, deu ênfase à simplificação e à depuração formais que captam a originalidade nativa.
            Foram propostas do movimento:
·         paródia; caçoada
·         redescobrir o Brasil pós-cabralino
·         busca do primitivismo
·         crítica ao nacionalismo postiço


Verde-Amarelismo

            Corrente nacionalista radical, reage contra o movimento Pau-Brasil, propondo que se abandonem as idéias européias, na busca da verdadeira nacionalidade brasileira. Identificada com o Integralismo, esta corrente propôs uma visão ufanista da realidade brasileira, valorizando tradições indígenas, folclóricas, na tentativa de criar um sentimento nacionalista forte, nos moldes do nazifascismo europeu.
            Participaram desse movimento: Menotti Del Picchia, Plínio Salgado, Cassiano Ricardo, Raul Bopp e outros.
            O Verde-Amarelismo (1924) subdividiu-se em vários grupos: Movimento da Anta (1927), Movimento da Bandeira (1936) e outros.

Movimento Antropofágico

Teve suas idéias expressas na Revista de Antropofagia. Surgiu como reação ao movimento verde-amarelista e foi liderada por Oswald de Andrade.m seu Manifesto Antropofágico, propunha que "só a antropofagia nos une", no sentido de que as culturas estrangeiras fossem devoradas e recriadas segundo nossas tradições e costumes. "Tupi or not tupi, that is the question" seria o grande dilema da realidade brasileira.
            Considera-se como origem do movimento antropofágico a tela de Tarsila do Amaral, de janeiro de 1928, por ocasião do aniversário de seu marido Oswald de Andrade. A tela recebeu o nome Abaporu.
            Tarsila do Amaral, num artigo publicado no Diário de S. Paulo de 28 de março de 1943, refere-se á sua tela assim:
            Aquela figura monstruosa, de pés enormes plantado no chão brasileiro ao lado de um cacto, sugeriu a Oswald de Andrade a idéia de terra, de homem nativo, selvagem, antropofágico...


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